Depois ia embora, levava com ela aquele mundo, aquela vida saudosa e sem identidade que só a música parecia conhecer. E o rapaz continuava o seu trabalho, e se trancava novamente em sua revolta, em sua raiva do destino que o fizera um empregado, praticamente mordomo, sem direito de falar ou querer, com raiva de sua mãe, que seguia submissa, e das pessoas que pareciam não notá-lo. Observava-as passarem na rua, elegantes, cheias de si, rumo aos seus casarões, sempre nariz empinado.
E havia aquele homem, sempre aquele homem, que passava de preto carregando seus papéis com ar de importância. O rapaz não sabia o que era, mas alguma coisa na insignificância com a qual aquele homem olhava para ele o incomodava em especial. As dores pesavam, as angustias e revoltas se acumulavam e ele tinha vontade de fugir, não importava pra onde, fugir dalí, daquele lugar, daquela vida, daquele destino... mas logo a tarde caia e a música chegava, serena, parecendo adivinhar suas dores. Calava sua lamurias, secava suas lagrimas, tirava-lhe o peso e ia embora. E como que com as baterias recarregadas ele continuava seguindo, apenas esperando, esperando que voltasse sua música.
Mas naquele dia ela não voltou. Naquele dia, como que por luto, o céu amanheceu cinza e as flores, pálidas. O que os olhos do rapaz viram o coração não comportou. Sua mãe, jogada no chão, olhar vazio e conformado, uma única lágrima rebelde contornando-lhe o rosto. E o patrão, apressado e desajeitado fechando as calças e arrumando os cabelos. Saiu e sequer olhou para trás.
O rapaz correu, sangue nos olhos, o facão que usava contra as ervas daninhas do jardim ainda na mão. Não foi ajudar a mãe, nem tampouco se vingar do patrão. Correu para rua, sem rumo, para longe, longe daquele lugar ao qual nunca pertenceu, onde ficou tanto tempo com medo de não pertencer a lugar nenhum, correu sem destino. Correu e trombou. Trombou com um homem. Não um homem, aquele homem, que passava de preto, sempre o mesmo olhar de insignificância, cruzando a rua como se não pertencesse ao mundo e nem se importasse com ele. O rapaz não pensou, tomado pela raiva e pela dor, apenas agiu, apertou o facão com as mão trêmulas e matou. Matou aquele homem... matou aquele olhar.... matou aquele ar de importância. E talvez o rapaz nunca soubesse que naquele momento de ódio e rancor, sem sequer suspeitar, matou seu consolo. Matou sua música.
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